18 de dez. de 2014

Achados e Perdidos

Trabalhava ali já há alguns anos, ao seu redor todo tipo de coisa inusitada cheirava a poeira e esquecimento. Ela também cheirava assim. Suas roupas comuns, seu rosto comum, seu cabelo comum, nada em especial chamava atenção nela, exceto por um eventual faiscar dos olhos castanhos, ninguém a acharia especial ou mesmo atraente. Entrou ali por concurso, mas não foi concorrido, porque ninguém trabalharia ali mesmo. Foi a primeira e única aprovada. Não tinha chefe, não tinha colega, estava sozinha ali.
No seu primeiro dia um bilhete com coordenadas colado a parede lhe indicaram como cuidar. Bastava, basicamente, sentar e esperar. Sempre aparecia alguém, ou coisas novas na bancada da sala velha. Mas não entendam mal, era uma sala ampla, cabia muita coisa ali, as paredes, agora amareladas, deviam ter sido belas paredes brancas um dia. As prateleiras que tomavam toda a sala continham todo tipo de coisa numerada, devidamente etiquetada, ensacada e perdida.
Tinha um palhaço de porcelana na quinta prateleira à esquerda de um leão, tinha lá no alto um anel presente do pai de uma debutante, vários sentimentos, nem sempre bons se debatiam dentro de globos sangrentos e algumas pessoas inteiras até se amontoavam no fundo da sala. Bom, precisava ser uma sala ampla. Na porta da sala tinha uma placa modesta de madeira entalhada com letras douradas: Achados e Perdidos.
Ela não tinha nome, não precisava de um nome, era a moça dos achados e perdidos, pensava, enquanto organizava um par de falsos amigos junto das outras pessoas, que lhe bastava ser chamada assim, achava até (oh, silly girl) poético. Todo final de ano chegava um carregamento novo de coisas nem sempre velhas. Nesse carregamento, em especial, todas as coisas vieram sangrando. Fazia muito tempo que a moça dos achados e perdidos não recebia uma remessa tão sangrenta. E mesmo ela que não era afeita as lágrimas, chorou.
A moça dos achados e perdidos não conseguiu um bom lugar para as perdas e rezou pela primeira vez que alguém fosse ali fazer uma visita e achasse, quase sem querer algo que o pertencesse. Sabia, entretanto, que aquela sala não funcionava assim, e também que não estava aberta à visitação. Na verdade, a sala no topo do prédio mais alto do mundo era um sepulcro, não um museu. Por isso ninguém ia ali e as perguntas repetidas pelas pessoas amontoadas ao fundo nunca eram respondidas. Por isso, por que quase nunca há encontros, só perdas, é que a última remessa sangrava.
Sangrava por que cada perda drenava o sangue de quem perdia, sangrava letras e se você olhasse de perto: poesia.

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