aprenda a confiar em você. Baco
Doutor, é o seguinte: eu estou de saco cheio de tudo isso aqui. Pensei seriamente pela primeira vez em mudar de profissão, não pela profissão, pelo trabalho. A vida toda eu tive uma ideia muito clara do que eu queria, não clara o bastante para ter forma, mas queria coisas grandiosas, queria felicidade, liberdade, conhecer lugares e falar língua, queria passar o dia numa siririca mental de teorias, mas isso aqui a realidade "esse baixo astral" eu não queria não. É de Leminski, você conhece? Poeta das obviedades! Ou ele era interessantíssimo ou chatíssimo, um boy que pensa muito sobre a realidade pode ser perigosíssimo. Então, eu tentei de tudo, meditei, rezei, praguejei, levantei e fiz fiz fiz fiz fiz até mal me manter de pé e tenho dúvidas sobre a sanidade, em todos os momentos que estive feliz (e medicada, sempre medicada, para ser louca com moderação) não me fizeram melhor, nem pior, do que todas as outras vezes em que estive por aí, alheia ou com dor ou puta, porra esse ano eu fiquei puta pra caralho, triste ou sei lá...Todas as vezes via do jeito que eu podia e ouvia como eu podia, assim, bem de cima da minha história com as ideiass claras e tudo mais. Nunca consegui ouvir de dentro do normal, o que me faz pensar: o normal fala? O normal aparece? Ele existe? O senhor me prometeu que ele existe. O senhor inclusive é uma coisa muito engraçada de dizer, parece até que eu estou falando com Deus. Sim, eu acredito em Deus, muda só o nome e o sentido da coisa toda, não precisa de escarcéu tão grande. É que nesses dias eu tive uma premonição, você vai me achar maluca e aumentar a dose eu tenho certeza, mas eu sempre soube que "Deus" - sim, assim, entre aspas - existia, desde criança, mas naquele tempo eu tinha uma imagem meio distorcida da coisa toda e envolvia barbas e sacrifícios, sempre desconfiei da embalagem, nunca do conteúdo, sentia isso diferente e acreditava de uma fé inabalável. Sobre conteúdo é isso aí, eu acredito que há algo mais aqui, não aqui nesse consultório cafonérrimo, estou um pouco hiperbólica hoje, sim, não hipomaníaca porque afinal de contas se fosse isso eu deveria me sentir feliz e eu só me sinto... Eu. Pior até, me sinto até uma versão melhor de mim, o problema é que isso também dói, então me diz, meu querido, qual é o ponto disso aqui então? Com depressão dói, sem também dói. Dor diferente ainda é dor, era para ser mais feliz do lado de cá. Cansei de me relacionar com quem pensa que pode me roubar as palavras, isso não é perseguição, darling, é revolta.
11 de dez. de 2024
Construímos ilusões de sua desordem,
16 de out. de 2024
Minha alucinação é suportar o dia a dia
e meu delírio é a experiência com coisas reais. Belchior
Oi, doutor, estou aqui de novo. Eu acho que eu desenvolvi uma espécie de superpoder, foi sim, nas grutas de onde vim isso é muito comum, então é o seguinte: quando eu olho na cara de uma pessoa eu sempre sei se ela quer que eu morra. Sim, juro! Só de olhar na cara dela eu sei se ela é o tipo de pessoa para quem minha existência não significa nada. Aquela pessoa para quem o fato de eu ser macumbeira sapatona maconheira e além disso tudo enlouquecida assim na passiva porque foi de fora para dentro e não de dentro para fora...essas pessoas. Eu sempre as vejo. Às vezes elas distribuem panfletos nas sinaleiras me convidando à conhecer Jesus, agora imagine quem é mais louco? Ela acha que vivendo mesmo nesse lugar foi difícil eu conhecer Jesus? Eu conheci Jesus, por isso mesmo troquei de calçada, Jesus não, mas seus seguidores, apóstolos, pastores e padres rosnam quando eu passo na rua, Jesus é aquele cara de boa que vê isso e não faz nada, porque apenas do lugar de homem é possível um sacrifício feito apenas uma vez, uma única vezinha, valer por mais de dois mil anos. Os ancestrais que eu adoro assim como eu precisaram se sacrificar inúmeras vezes, a mim me parece mais adequado, parecemos próximos nas experiências e agruras, parece que quando eu tô ali diante de Orixá ou em transe, pela primeira vez eu existo para Deus. Mas é aquilo, como diz a música, quem tem santo é que entende. Isso também me assusta sabe doutor, porque me faz acreditar que eu sou voluntariamente louca deve ser toda aquela merda de ficção pequeno burguesa sobre a loucura que eu engoli na graduação de psicologia, tudo aquilo que me fez ter medo até de me sentir feliz. Ficava pensando que felicidade era hipomania, imagine você, que coisa mais triste. Comecei a burlar a alegria em favor da obrigação, da regra e do amargo, me comportando como alguém que não adora um panteão de Deuses que não só dança, como ri e abraça, no corpo de pessoas vivas, pessoas dispostas a se sacrificar no presente por uma comunidade, por bem mais que dois mil anos, todos os dias. Até hoje. Então, qual vai ser a dose agora ?
9 de out. de 2024
Oxum melhora a cabeça ruim
A primeira vez que a vi estava entre as árvores e era dourada, não a mulher, sua aura sob a luz do dia bonito. Imediatamente pensei que precisava me aproximar, não era tesão barato o que eu sentia, era um outro tipo de apaixonamento, um fascínio encantado. Quando eu comecei a andar sobre esse chão eu vi Oyá por aí, lembro de confiar em Oyá, na sua dança, mas em Oxum não. Oxum me assustava, tudo que se falava sobre ela me inspirava mistério, Oxum era um buraco negro, uma espécie de força criadora capaz de tudo fazer desaparecer. Aí aquela mulher adorada, a dourada, me fez fazer as pazes com o desaparecimento das coisas, me fez ver beleza na partida, no adeus, na partilha. Oxum me deu um terreno de amor, um banho frio num dia quente, derramou sobre a dor dos meus ocultos um bálsamo. Oxum me mostrou que eu podia ainda amar, ainda fazer, ainda acreditar. Oxum melhora a cabeça ruim…
26 de set. de 2024
Já senti saudade, já fiz muita coisa errada,
Já pedi ajuda, já dormi na rua, mas lendo atingi o bom senso...
Boa tarde doutor, sou eu de novo, fumando um cigarro atrás do outro. Quantos? Um maço. São quantos cigarros um maço? 20 doutor. Por dia? Isso, por dia, entendo sua dificuldade, nunca sei contar semanas de gestação, muito mais fácil contar em meses, não sei como inventaram essa sacralidade na gestação, até data é diferente. Você sempre foi sarcástica assim? Sim, desde criança. É uma defesa? Não, é uma forma de existir sem ceder ao maniqueísmo cristão. Entendo...Entende mesmo? Remédios podem te ajudar a dormir melhor. Certo, eu preciso mesmo dormir melhor para trabalhar mais. Sua voz é importante. Minha voz é uma mentira. Melhorar não é linear... Mas eu gostaria que fosse.
A imunização racional...
26 de ago. de 2024
Então fica bem se eu sofro um pouco mais,
Eu queria um analgésico suficientemente forte para não sentir tanto. De alguma forma me habituei com as intensidades e isso me tornou alguém que sente muito, no meu silêncio ecoam os versos de Leminski “Sinto muito, sentir é muito lento”. Estou aqui e estou de pé diante do caos que eu mesma construí para mim, falei em alforria a liberdade que pagamos a quem nos escraviza, as vezes à nós mesmas. Eu fui construindo um lugar para mim, uma espécie de castelo de cartas, usando como base os sonhos que tinha e as minhas costas. Acontece que eu já estava há tempo demais abaixada e você sabe o que acontece quando a gente se levanta abruptamente né ? As coisas caem. Caíram porque eu levantei, mas também caíram porque eu escolhi brincar de subjugar meu corpo, meus desejos e transformar tudo em cartas. Qualquer coisa como quanto maior a altura, maior o tombo, para me consolar penso que para cair é preciso experimentar alturas. Ninguém cai de lugar nenhum. Até para cair é importante se levantar, visto que quem se deita no lugar de objeto permanece imóvel. Meu pai costumava dizer que era melhor um pobre sofrendo do que um rico apaixonado, porque o rico apaixonado perde o crivo e mata e o pobre sofrendo faz poesia. Vamos fazer poesia. Algo como:
Eu assumo
Eu sou a maior responsável
Por tudo isso que está me machucando agora
Mas o fato de me saber responsável
Não anula a dor que me causa
Saber quantas vezes,
Quantos cifrões,
Quantas culpas,
Tantos anos
Eu não me escolhi.
Quem é mais sentimental que eu ? Eu disse nem assim se pôde evitar.
12 de ago. de 2024
Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele tá doendo em mim,
Eu estou diferente. Minhas malas foram roubadas, que nem as coisas da Ana Carolina naquele dvd, em que ela recita em resposta ao infortúnio "só de sacanagem", então, perdi todos os meus perfumes, eu tinha dois, um que usava mais de dia, na correria, e um outro que usava menos no dia-a-dia e reservava para os dias especiais, esse perfume eu uso desde os 18 anos, foi o primeiro perfume importado que tive e me apaixonei pelo cheiro, queria ser alguém que se atrevia a cheirar daquela maneira, mas eu não me sentia eu mesma com ele, eu aprendi a torna-lo parecido comigo, porque era parecido com quem eu queria ser. Bom, o caso é que ele foi embora. Fico voltando naquele dia como numa investigação de mim, sinto falta das coisas, mas sem desespero, me estranho e mudo de assunto para pensar agora no meu amigo que tem tantos tantos cheiros, será que ele se identifica com todos, ou para cada um ele cria uma persona? Constatei que estou cansada de criar personas, decidi ali, com a água quente demais batendo no cansaço das minhas costas, que eu iria ser uma pessoa que usa o perfume que reflete o cheiro que a identifica, mesmo que usar perfume tenha algo de cheirar a algo que é desde sempre inumano, não queria cheirar a minha humanidade, queria que a humanidade me cheirasse, queria deixar algo de mim, uma mensagem que transbordasse a minha passagem pelas pessoas, então olhei para o perfume extravagante que escolhi numa loja de departamento há alguns dias, em cima da pia, apoiado numa bandeja de espelho, coisas rosas e de cristal refletindo no seu corpo, também cor-de-rosa, e na virgula que fechava seu frasco, preta com dourada, eu sinto uma atração estranha pelas combinações de cores que ele faz, e o fato dele guardar um perfume adocicado com traços de canela e outros temperos me faz sentir abraçada pelo seu cheiro, parece comigo eu sou doce e temperamental na mesma proporção, não é um cheiro marcante, absoluto, não é um chanel n 5 que roubaria dos demais o brilho, eu quero ser alguém que usa um perfume só, porque acredita que esse cheiro conta algo de si pro mundo que talvez possa ser contado em diferentes situações e circunstâncias, tem um ebó que quando saudamos para o dia dizemos "Obará conhece meu cheiro", tomamos Obará enquanto uma das facetas da prosperidade e dos caminhos abertos, e isso me leva a pensar em Ajé, aquela que traz as riquezas do fundo do mar para as nossas vidas, e decido também: amanhã vou fazer uma atividade física, vou começar - Agosto é mês de Omolu - nem vou pensar, só vou lá e vou fazer, pego o sabonete de erva doce, minha mandinga ordinária para dias ruins e lembro do que discutimos na terapia, quero fazer uma atividade física, minha terapeuta possivelmente cansada dos meus arroubos desejantes me conduz em uma dança que em um determinado ponto se torna algo sobre como meu pai me disse que eu não deveria fazer nenhuma luta porque eu era muito temperamental, agressiva, engraçado como as coisas que dizem de mim quase nunca se parecem com como eu me sinto, afinal eu sou doce com canela no cheiro, ou será isso aquilo que quero que as pessoas me sintam sendo, o caso é que eu fiz dança, fiz aeróbico com steps, fiz musculação, teatro, crossfit e um dia até fui para uma aula experimental de Muay Thai e só fiz o aquecimento, não cheguei a luta de fato, nunca fui fazer luta com medo durante a maior parte do tempo do que aconteceria se eu entrasse em contato com o meu suposto temperamento, talvez combine com alguém que usa um perfume elegante desafiar seu próprios medo, e passar um pouco disso que é o que se conhece e sustenta por não saber mais de si mesma, para aquilo que é saber de si o bastante para escolher o que todo mundo escolhe e viver o que todo mundo vive sem precisar mais da confirmação da inadequação em cada passo do seu dia. Do meu dia. Eu não quero mais viver com medo, com um medo tão profundo e significativo de ser quem eu realmente sou a ponto de descobrirem que eu, no fundo, me pareço mesmo com todo mundo, sou mesmo igual aos desiguais e iguais, confrontar, assim, apenas tomando banho, muito quente e muito cheiroso, que eu não tenho nada de especial. Não ser saudável não é especial, ser saudável também não é. Nada é tão especial assim. Nessa versão, essa constatação não me deprime. Fico ali sentindo o que preciso sentir pelo tempo necessário, um pouco triste, um pouco alegre, coisas boas e ruins devidamente moderadas, sem arroubos. As coisas são o que são. Gostaria de poder falar com meu pai sobre isso.
2 de ago. de 2024
Não dá pra ser covarde/O perdão não sabe ver as horas,
Mesmo saindo cedo ele tá atrasado
Não sei se posso parar de fumar, o cigarro mantem minhas mãos e meu peito ocupados, enquanto eu fumo o tempo se arrasta lento, entre uma baforada e outra tenho uma sensação de parâmetro e controle. Não acho que fumar seja um hábito saudável, mas acho bonito ter a coragem de assumir a minha insalubridade. Essas coragens tem me habitado de muitas formas nesse tempo, se era antes Gilda, coitada, me sinto sendo Gilda, apenas. Os caminhos torpes, os silêncios vários, cada maço de cigarro esvaziado buscando um propósito, um poema, um nome que esgotasse a mim, tudo isso abandonado, estou à deriva de mim. Gosto de estar intencionalmente derivada, de mim, por mim, para mim. De todas as coisas caras que vesti, comi, bebi, comprei, essa é a que me ascende a condição de Eu, meu próprio singular. Busquei nas noites atrevidas, busquei nas bocas entreabertas, busquei nas paixões irrefreáveis e não pude ver como vi quando me olhei no espelho, nem era um espelho exatamente, mas um objeto refletor: eu, ali. Ali comigo todo tempo e mesmo nua, pobre, rubra, puta da vida, mesmo marginal, coisinha, ex-qualquer-coisa e tudo que já se soube sobre mim, eu continuava ali, me sorrindo torto e de volta, capaz de fumar um cigarro por vez. Capaz de reger meu caminho entre os tropeços e os pódios. Eu tive muitos pódios, fui eleita várias vezes por diferentes pessoas, me queriam ali, eu era o centro do mundo de pessoas que se refugiavam nas solidões eloquentes de si mesmas e depois cansavam, procuravam outra Gilda, outra moda, outros modos. E isso me afetava tanto, eu queria, eu quis sempre ser tudo para alguém que distraída não fui capaz de perceber que mesmo na iminência do que me mata, eu sou tudo para mim mesma. Estou aqui, mais uma vez apaixonada, dessa vez é tudo novo, eu prometo, estou apaixonada por alguém que eu sempre fui e nem sabia que era.
25 de jul. de 2024
Por ser de lá na certa por isso mesmo,
Doutor, sou eu de novo, lembra de mim? Parece importante que você lembre. Lembrar é uma coisa mesmo muito engraçada. Eu me lembro que eu te disse que quando eu ouvia música estava sendo música mesmo e você achou graça, porque para você música é sempre música, porque você ouve os louvores chulos e se identifica com isso, eu me sinto caber em lugares mais complexos que isso. Então, eu tenho sentido coisas novas. Não novas inaugurais, novas com uma memória indistinta de ter visto, o senhor já sentiu isso? Uma paz de espírito no caos ? Na mais ampla bagunça a sensação firme de vento na cara em um dia de sol no meio do mar? Aquela sensação que é sempre novavelha de nunca ter sentido e já ter sentido, porque afinal já ventou na minha cara em algum momento, mas também nunca senti o vento como tenho sentido agora. Agora não é sempre e não é nunca. Agora é agora. Então estou sentindo o agora completamente. Tenho sentido tanto o agora que agora eu sei de coisas de mim que antes ignorei de tal forma que para mim, antes, não existiam. Voltei a sentir o gosto da vida. Novovelho. Acho que o senhor não deve sentir, ou talvez sinta, mas não se permita acreditar que sente que é um jeito de se fingir que não existe, mesmo que constatar a inexistência só seja possível se de alguma forma tiver existindo. A imaginação cria as coisas, e posso viver assistindo, mas doutor eu acho que prefiro viver vivendo.
14 de jul. de 2024
Abre a porta e a janela,
E vem ver o sol nascer.
Manhãs com gosto de café, o sorriso cantado pelos Novos Baianos, a fumaça do incenso e do cigarro, a demora nas pausas, o excesso das pausas, o perfume das flores novinhas compradas hoje na feira. Ora, você sabia que com 50 reais e um pouco de boa vontade é possível produzir no mínimo três arranjos e presentear os vermelhos, roxos e amarelos desses jarrinhos por toda a casa, até quem sabe presentear as pessoas amadas?!E esse ventinho frio de julho, que sopras as folhas ressecadas no quintal, verde por todo lado, seja no limo das paredes surradas pelas chuvas, seja na grama que cresce abundante. Também tem passarinhos brincando aqui e acolá e mosquitos até, mas o bastante para não perturbar a paz. A Baby do Brasil tem mesmo um sotaque bonito, não é ? A preguiça dos corpos que se esticam no sofá, o calor das mantas e o cheiro que é de amaciante, mas também cachorro, uma moto que corta o silêncio repleto de sons. O silêncio em mim. Quando eu paro e consigo captar o bom do presente.
26 de jun. de 2024
Não falem dessa mulher perto de mim,
Não falem pra não lembrar a minha dor.
Ela tem um sono leve, a dor, sabe? Diante dela passos miúdos que não fazem barulho no corredor imenso das lembranças. Nem psicotrópicos nem drogas nem analgésicos nem nenhuma forma de intervenção externa interna possível impossível só até perder o ar e dormir e esquecer e eu esqueço e então vem uma foto, uma menção do seu sagrado nome. E a dor volta. Uma pequena fisgada no meu peito, fico suspensa no tempo, quase um instante. Quase uma eternidade. Fico sem ar. Algumas vezes disfarço o susto da dor falando seu nome sem rebuscamento nenhum, como se não fosse nada. E sinto que convenço uma plateia esperançosa de que eu não sinto a sua falta. Convenço de que a dor não é imensa, convenço de que a vida seguiu e ninguém vai reparar. E ninguém repara, eu reparo, coleciono as nossas memórias e me aterrorizo muitas noites quando você visita meus sonhos. Fantasio que vou te encontrar por aí e me esforço para não te encontrar jamais. Não sei fingir bem. Acreditei por algum tempo que éramos almas afins e por isso sentia sua presença e adivinhava seus pensamentos. Hoje diante da finitude me sinto capenga. Foi muito difícil, é. É muito difícil acordar e dormir num mundo onde você me despreza. Foi diante do desprezo que eu desisti, sabia? Pra mim o desprezo sempre foi a morte do amor. E olha só eu te amava, eu te amava com tudo que eu tinha. Hoje quando mencionam seu nome numa roda eu sinto o mundo girar numa vertigem horrorosa. Já quis apagar você, já quis desapegar de você, mas hoje tudo que me resta de tudo que você foi é essa cólica que eu sinto, cólica não cólera, no peito quando lembro e lamentavelmente eu lembro muito ainda. Eu sei que um dia eu não vou lembrar mais tanto e que a memória do amor amado se dissolverá na paisagem. Já vi isso acontecer antes, vou ver isso acontecer depois. Para mim perder quem eu amo sempre foi pior que a morte e as lágrimas salgadas não consolam a imensidão de mar em mim. Mas eu sigo, com as mortes no peito, o luto que não tem fim, a saudade que amarga, sigo tentando me lembrar quem eu era mesmo antes de você, para ver se eu descubro quem eu posso ser depois.
11 de jun. de 2024
Eu e água,
Para a água da vida.
Estou brincando no rio e sou criança. O medo não me assalta, somos apenas nós duas - o rio e eu. Me estico sobre seu leito dourado e me deixo acariciar, recebo o carinho que ela me oferta e somos amigas. Espalho água, a reviro entre meus dedos, experimentando sua temperatura, quase sempre fria, e somos amigas. O rio me conta suas histórias de água e eu lhe conto minhas histórias de volta, quando olho no olho d'água também me enxergo, me enxergando umedeço as minhas fontes, me sinto leve. O rio caminha devagar e sempre, agora já adulta, eu corro. Eu tenho medo do rio, mesmo que ele não seja especialmente perigoso, parece que a água guarda um segredo sobre mim que só poderei descobrir mergulhando, mas eu me recuso, não somos mais amigas, estou amarga. E então um dia, por descuido o rio atravessa meu caminho, mais dourado do que nunca, e eu me encanto com as cores que ele traz em seus braços, eu quero ser amiga do rio, como fui em criança, mas não sei como, sinto que perdi o jeito. O rio então canta para mim, no meu momento de maior agonia, o rio canta para mim e me diz que outra vida fresca, próspera e boa é possível. Eu mergulhei, mesmo com medo, de olhos abertos e corpo presente e me permiti ficar. Eu quis ficar, escolhi ficar, mergulhada no rio, de olhos abertos, encantada com os presentes que ela nem sabia que me havia dado, mas recebi e fiquei. Fiquei e hoje sinto como sentia em criança a alegria do mergulho e o carinho do rio me salvou da amargura. O rio viu em mim com seus olhos de água e vida o que eu já não via mais, alegria. E me batizou Layó, alegria. E o rio me escolheu pra ser dela e ser minha, para sermos juntas - eu e água.
5 de jun. de 2024
Essa infinita Highway ,
Memorizo o céu de uma cidade qualquer enquanto dirijo, prometo para mim mesma não esquecer. Capturo a cena e retorno para ela, constatando que ainda lembro. Coleciono memórias de um passado distante e costuro-as no presente para que ele não perca o sentido. Às vezes acho a vida pouca, quando assim, quero correr mais que as pernas para longe, para a vida muita. Às vezes dirigindo me sinto mais importante que o dono da preferência na rua, me aterrorizo de mim constatando que também sou mesquinha e logo me perdoo, repetindo pra mim mesma que sou pessoa - tenho direito às minhas falhas - brindo as minhas contradições e sigo segurando o volante da minha vida. Carrego dores que não deixam de existir, não importa qual caminho eu pegue, vícios e multas de mal comportamento têm me seguido obstinadas. Tudo me convida a parar, apreciar a vista, encosto o carro, respiro fundo, visito o céu de meu registro mais antigo e bordo no presente o assombro do mais novo. Não quero motorista, quero dirigir livre. Às vezes eu gosto de estar dentro de mim, às vezes queria estar no outro. Uma vez me disseram que Ferrari não tem adesivo, nunca me imaginei Ferrari, estou mais para ferrada mesmo, mas cubro meu corpo de desenhos e palavras que são apenas minhas e que só eu escolhi para mim, faço do meu corpo automóvel e estrada, me percorro e me percorrendo não me esgoto.
14 de mai. de 2024
Mas se apesar de banal, chorar for inevitável
21 de abr. de 2024
Aí foi que o barraco desabou,
" É isso, a fonte secou!" brada à plenos pulmões, "Não vou mais tolerar nada, agradar ninguém, amar ninguém" continua, dessa vez um pouco mais baixo. E no silêncio se recolhe e encosta o corpo na parede, a frieza toca as costas como um afago. "É isso" repete mais uma vez com um suspiro ao final. Se dá conta então que não gritou, exceto na imagem ficcional que criou para si mesma, ao contrário estava emudecida, lábios secos e contritos, maxilar rígido, encarando um estranho qualquer fixamente. Com um maneio de cabeça virou o rosto para o outro lado, onde uma criança sorria bobamente para o nada. Percebeu que sentia falta dessa sensação que supunha na expressão da garota, hoje seu rosto relaxava nessa cena de grito mudo. Se perguntava se era possível vê-la quando olhavam para ela. Tinha essa impressão cansada de que os outros não a viam, apenas se apresentava como uma miragem dos desejos dos outros. Era curioso, causava uma certa estranheza intimamente gostar disso, se sentia caleidoscópica e intocável, aquilo que ninguém vê, também ninguém macula. Talvez por isso tenha prostituído seus dias em telespectar a vida de fora, imaculável no seu eu invisível. Talvez por isso também sofresse com o que entregava de bom grado a quem não lhe alcançava, e por um instante a ocorreu que a fonte não precisava secar, ela precisava parar de verter.
22 de mar. de 2024
Cada ser tem sonhos a sua maneira,
No ronco da cidade uma janela assim acesa.
Acendem janelas no meu desejo,
Por isso não durmo bem,
Arrego, mas a dor que carrego
Me assombra nas pálpebras
O desejo explode na contramão
Ainda não tem forma
Mas tem informe
Uniforme
Imensidão
Parece um suplício acordar do início do não
O sonho é o vício da rotina, a dor seu guidão
O desejo não
O desejo planta flores no submundo da devassidão
O desejo acorda o dia
que o sonho rouba em vão
Fico presa na contradição
De sonhar sonho só
De desejar pelo não
10 de mar. de 2024
Quando você me deixou, meu bem
Me disse pra eu ser feliz e passar bem.
Você sabia que pessoas que se amam fazem espontaneamente corações com os corpos quando se abraçam? Eu acredito que o coração como símbolo venha desse gesto, mas eu também acreditava que "Leãozinho" foi escrita para mim então acho que meu crivo de explicações é muito subjetivo.
A dor é um argumento mais convincente que o Amor. Foi o que eu disse numa conversa despretensiosa, é o que eu acredito nos dias difíceis. Que não cabe no axioma do Amor a força de convencimento e mobilização que a dor cria. A dor com seus inquestionáveis traz uma valor de execução, perder por exemplo, dá conta de tudo que é intangível mas que se deseja tanger, pena que quando a dor te mobiliza ao transito não tem a força de uma crença que a sustente e diga à tudo que pertence a memória que vale mais o amor. A dor convence quem sente, o Amor convence aos pares. Mas quando decidimos perder, o abandono do sujeito amado não é maior do que o abandono de quem Ama, deixar de amar é se colocar a disposição da dor.
Foi (no passado, não "É" e "É" no presente) assim que eu aprendi a saber quando era amor, inclusive, quando a ausência doía. Eu nunca tive amor ausente, ouvi muita Bossa Nova em tenra idade e aprendi que "mesmo amor que não compensa é melhor que a solidão." De certo que o desejo de evitar a solidão é sobretudo o desejo de evitar a dor. Cazuza estava certo quando disse que morrer não dói? Sim e não, depende da perspectiva, o que morre não morre e só, morre também para alguém, para aquilo, para os propósitos e todas as próximas vezes que caem junto.
Talvez a pergunta diante da morte seja "Como vou viver?" com algo morto dentro de mim ocupando todos os espaços e vivendo <ainda> que seja viver pelo não.
Felizmente Passa
Perder um amor é pior que a solidão.
Eu perco o chão, eu não acho as palavras. Eu ando tão triste, eu ando pela sala, eu perco a hora, eu chego no fim, eu deixo a porta aberta...Eu não moro mais em mim.
Eu estou ao meio.
Onde será que você está agora ?
Desculpa, isso era para dizer:
Quando você me quiser rever, já vai me encontrar refeita, pode crer.
Já me fiz a guerra por não saber (me leva amor),
Não tinha mais como voltar àquele bar, as incursões na vida noturna e o glamour dos velhos tempos esvaneceram. Tinha agora uma vida fora da noite, um emprego honesto, seus silêncios e uma necessidade de sono que colocou os sapatos vermelhos de lado. Era um outro desdobramento de Adalgiza, de Gilda, de qualquer mulher. Mas ainda com algum apreço pelos líquidos amarelos para lubrificar os pactos sociais de silêncio da noite nas agruras do dia. Ainda tinha a lembrança do vermelho nos lábios, mas agora ouvia Beth Carvalho no domingo e preparava um lombo para a família, resignada nas transgressões, mas nunca no afeto. O tempero nos dedos enfeitava as unhas bem feitas, havia alguma vaidade, ainda. Mas os pés descalços, tocavam um chão sem sonhos. A realidade abaixo dos pés anuncia o calor dos dias, a necessidade de limpeza da casa, as cheganças que fazem festa na dor.
Vim de longe léguas cantando eu vim (me leva amor)/Vou, não faço tréguas sou mesmo assim
(Por onde for quero ser seu par)
24 de fev. de 2024
Aniversário de Sobriedade
E eu preciso de coragem pra viver fazendo as pazes...Ou quase. Se me der guerra eu quero mais, o tempo fecha eu tô de pé, chamando temporais, viciada em caos, na beira do cais. Banquete animado à um bando de animais... Black Alien
Estou num quarto cercada de livros. Muitos eu nunca li, porque trabalhar 40 horas semanais drena minha energia vital. Admiro quem consegue trabalhar muito e ter uma vida: ler, malhar, ouvir música, ver beleza nas coisas. Eu quando trabalho muito não vejo sentido em nada. Cumpro a função social feliz de atestar minhas vitórias por meio do dinheiro imaginário, tenho coisas, pago financiamentos, ando bem vestida e tomada banho, tem sido o melhor que consigo fazer, equilibrando a mediocridade da ficção de ser uma mulher de classe média limpinha com as minhas marginalidades todas. Fumo maconha, chupo buceta, acordo de ressaca e repito. Ressaca de tudo que eu não vivi ainda. Falei pros meus amigos que ando meio niilista, mas realmente não acho que o problema seja eu. Vários deles também estão assim: sedentos de uma oportunidade de prazer que viabilize a nossa existência e dê contornos para ela, sem abrir mão da ficção da mediocridade: vencer pelo trabalho: HAHAHA. Não é um jogo de ganhar ou perder, é um jogo de perder e perder. Vendo minha força de trabalho à um preço justo, mas nunca é o bastante. Esse ambiente insalubre da vida propicia vícios, arroubos e afetações. Fico me perguntando se sou eu que estou maluca ou a marginalidade tomou mesmo conta de mim. Quando eu vivia no mundo, acreditando que sendo parte de um coletivo de luta eu estaria dando minha preciosa contribuição para a mudança que parecia crível, eu vivia melhor. quando eu acreditava eu vivia melhor. Tinha uma motivação intrínseca, tinha uma razão de ser. Eu sou essencialista para caralho, sempre penso e me ressinto da ausência de essência, quero ver as marcas da essência e me digladio com a aleatoriedade da existência, parece vazio assim. Pelo menos brigando para existir eu sinto que faço algo, trago a angústia, cuspo fumaça nos transeuntes, transgrido leis, marco corpos. E só. Acordo para a ausência dos antidepressivos, durmo para as razões do deprimir. Se eu faço tudo que o jogo pede, porque não sinto a alegria que me prometeram? Sonho liberdades quando me permito, mas são frágeis e curtas as escapadas. Choco de propósito, absolutamente consciente, os que vivem como eu, ainda assim me acovardo na burocracia do que " deve ser feito" também tem um teatro de intenções canastronas aqui.