e meu delírio é a experiência com coisas reais. Belchior
Oi, doutor, estou aqui de novo. Eu acho que eu desenvolvi uma espécie de superpoder, foi sim, nas grutas de onde vim isso é muito comum, então é o seguinte: quando eu olho na cara de uma pessoa eu sempre sei se ela quer que eu morra. Sim, juro! Só de olhar na cara dela eu sei se ela é o tipo de pessoa para quem minha existência não significa nada. Aquela pessoa para quem o fato de eu ser macumbeira sapatona maconheira e além disso tudo enlouquecida assim na passiva porque foi de fora para dentro e não de dentro para fora...essas pessoas. Eu sempre as vejo. Às vezes elas distribuem panfletos nas sinaleiras me convidando à conhecer Jesus, agora imagine quem é mais louco? Ela acha que vivendo mesmo nesse lugar foi difícil eu conhecer Jesus? Eu conheci Jesus, por isso mesmo troquei de calçada, Jesus não, mas seus seguidores, apóstolos, pastores e padres rosnam quando eu passo na rua, Jesus é aquele cara de boa que vê isso e não faz nada, porque apenas do lugar de homem é possível um sacrifício feito apenas uma vez, uma única vezinha, valer por mais de dois mil anos. Os ancestrais que eu adoro assim como eu precisaram se sacrificar inúmeras vezes, a mim me parece mais adequado, parecemos próximos nas experiências e agruras, parece que quando eu tô ali diante de Orixá ou em transe, pela primeira vez eu existo para Deus. Mas é aquilo, como diz a música, quem tem santo é que entende. Isso também me assusta sabe doutor, porque me faz acreditar que eu sou voluntariamente louca deve ser toda aquela merda de ficção pequeno burguesa sobre a loucura que eu engoli na graduação de psicologia, tudo aquilo que me fez ter medo até de me sentir feliz. Ficava pensando que felicidade era hipomania, imagine você, que coisa mais triste. Comecei a burlar a alegria em favor da obrigação, da regra e do amargo, me comportando como alguém que não adora um panteão de Deuses que não só dança, como ri e abraça, no corpo de pessoas vivas, pessoas dispostas a se sacrificar no presente por uma comunidade, por bem mais que dois mil anos, todos os dias. Até hoje. Então, qual vai ser a dose agora ?
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