26 de jun. de 2024

Não falem dessa mulher perto de mim,

 Não falem pra não lembrar a minha dor.

Ela tem um sono leve, a dor, sabe? Diante dela passos miúdos que não fazem barulho no corredor imenso das lembranças. Nem psicotrópicos nem drogas nem analgésicos nem nenhuma forma de intervenção externa interna possível impossível só até perder o ar e dormir e esquecer e eu esqueço e então vem uma foto, uma menção do seu sagrado nome. E a dor volta. Uma pequena fisgada no meu peito, fico suspensa no tempo, quase um instante. Quase uma eternidade. Fico sem ar. Algumas vezes disfarço o susto da dor falando seu nome sem rebuscamento nenhum, como se não fosse nada. E sinto que convenço uma plateia esperançosa de que eu não sinto a sua falta. Convenço de que a dor não é imensa, convenço de que a vida seguiu e ninguém vai reparar.  E ninguém repara, eu reparo, coleciono as nossas memórias e me aterrorizo muitas noites quando você visita meus sonhos. Fantasio que vou te encontrar por aí e me esforço para não te encontrar jamais. Não sei fingir bem. Acreditei por algum tempo que éramos almas afins e por isso sentia sua presença e adivinhava seus pensamentos. Hoje diante da finitude me sinto capenga. Foi muito difícil, é. É muito difícil acordar e dormir num mundo onde você me despreza. Foi diante do desprezo que eu desisti, sabia? Pra mim o desprezo sempre foi a morte do amor. E olha só eu te amava, eu te amava com tudo que eu tinha. Hoje quando mencionam seu nome numa roda eu sinto o mundo girar numa vertigem horrorosa. Já quis apagar você, já quis desapegar de você, mas hoje tudo que me resta de tudo que você foi é essa cólica que eu sinto, cólica não cólera, no peito quando lembro e lamentavelmente eu lembro muito ainda. Eu sei que um dia eu não vou lembrar mais tanto e que a memória do amor amado se dissolverá na paisagem. Já vi isso acontecer antes, vou ver isso acontecer depois. Para mim perder quem eu amo sempre foi pior que a morte e as lágrimas salgadas não consolam a imensidão de mar em mim. Mas eu sigo, com as mortes no peito, o luto que não tem fim, a saudade que amarga, sigo tentando me lembrar quem eu era mesmo antes de você, para ver se eu descubro quem eu posso ser depois. 

11 de jun. de 2024

Eu e água,

Para a água da vida.


Estou brincando no rio e sou criança. O medo não me assalta, somos apenas nós duas - o rio e eu. Me estico sobre seu leito dourado e me deixo acariciar, recebo o carinho que ela me oferta e somos amigas. Espalho água, a reviro entre meus dedos, experimentando sua temperatura, quase sempre fria, e somos amigas. O rio me conta suas histórias de água e eu lhe conto minhas histórias de volta, quando olho no olho d'água também me enxergo, me enxergando umedeço as minhas fontes, me sinto leve. O rio caminha devagar e sempre, agora já adulta, eu corro. Eu tenho medo do rio, mesmo que ele não seja especialmente perigoso, parece que a água guarda um segredo sobre mim que só poderei descobrir mergulhando, mas eu me recuso, não somos mais amigas, estou amarga. E então um dia, por descuido o rio atravessa meu caminho, mais dourado do que nunca, e eu me encanto com as cores que ele traz em seus braços, eu quero ser amiga do rio, como fui em criança, mas não sei como, sinto que perdi o jeito. O rio então canta para mim, no meu momento de maior agonia, o rio canta para mim e me diz que outra vida fresca, próspera e boa é possível. Eu mergulhei, mesmo com medo, de olhos abertos e corpo presente e me permiti ficar. Eu quis ficar, escolhi ficar, mergulhada no rio, de olhos abertos, encantada com os presentes que ela nem sabia que me havia dado, mas recebi e fiquei. Fiquei e hoje sinto como sentia em criança a alegria do mergulho e o carinho do rio me salvou da amargura. O rio viu em mim com seus olhos de água e vida o que eu já não via mais, alegria. E me batizou Layó, alegria. E o rio me escolheu pra ser dela e ser minha, para sermos juntas - eu e água. 

5 de jun. de 2024

Essa infinita Highway ,

 Memorizo o céu de uma cidade qualquer enquanto dirijo, prometo para mim mesma não esquecer. Capturo a cena e retorno para ela, constatando que ainda lembro. Coleciono memórias de um passado distante e costuro-as no presente para que ele não perca o sentido. Às vezes acho a vida pouca, quando assim, quero correr mais que as pernas para longe, para a vida muita. Às vezes dirigindo me sinto mais importante que o dono da preferência na rua, me aterrorizo de mim constatando que também sou mesquinha e logo me perdoo, repetindo pra mim mesma que sou pessoa - tenho direito às minhas falhas - brindo as minhas contradições e sigo segurando o volante da minha vida. Carrego dores que não deixam de existir, não importa qual caminho eu pegue, vícios e multas de mal comportamento têm me seguido obstinadas. Tudo me convida a parar, apreciar a vista, encosto o carro, respiro fundo, visito o céu de meu registro mais antigo e bordo no presente o assombro do mais novo. Não quero motorista, quero dirigir livre. Às vezes eu gosto de estar dentro de mim, às vezes queria estar no outro. Uma vez me disseram que Ferrari não tem adesivo, nunca me imaginei Ferrari, estou mais para ferrada mesmo, mas cubro meu corpo de desenhos e palavras que são apenas minhas e que só eu escolhi para mim, faço do meu corpo automóvel e estrada, me percorro e me percorrendo não me esgoto.

Picolé de Chuchu ;

Fria e Indigesta !